"Sei meditar, sei jejuar, sei esperar (Hesse)

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Primeiras Linhas


E a oficina passou como todas as outras. Os poucos alunos que sobreviveram à fanzine já não se falam por e-mail. Quase nunca se falavam mesmo. O nosso professor sumiu. Ele está com o meu livro. Eu estou com o DVD dele. Decidi que vou deixar que ele fique com o meu livro dos abraços, esperava que ele dissesse: “Ok, fique com o meu DVD”. Porém, ele não se manifestou a esse respeito, como eu já disse, ele sumiu (acredito que tenha sido abduzido).

As primeiras, segundas e outras linhas já se foram também. Dona Maricota continua a cortar suas folhas e o Alexandre com sua pá a desenterrar Andersen. Na terra desse coveiro os vaga-lumes se apaixonam pelas lamparinas e até tomates são socialmente ativos.

Dona Nena debruça-se todos os dias contemplando o mar do 88° do prédio branco. Os relógios que resolveram sumir voltaram ao lugar de costume, e assim a antropomorfização se fez. Todos os comentários medíocres do tipo “achei legal” continuarão a sair, a princípio, da minha boca. Agora trata-se mais de um mantra (uma quase pseudo religião do “achei legal”) do que medo em criticar.

Dayane, que nunca responde ao grupo, escreve em seu blog, e os textos se atiram nus pela janela (efeito do ayuasca). Marcos continua a escrever seu livro, a atender os pacientes, impacientes e doentes, gostar de rock e Edgar Alan Poe. Ironides, sensato, e suas histórias recheadas de finais surpreendentes, nos espreitam, aguardando o momento exato de atirar-nos origamis inflamados. Sônia, pelo estilo, desfila através de palavras seus morenos sensuais aos olhos de carrancas. Ângela e Eli nos assistem, às vezes passivas, por vezes inflamadas, questão de pontos de vista e, como disse Rosa, “pão ou pães é questão de opiniães”.

A novela mexicana e as vozes do Thiago e do Marcos ainda não saem da minha mente. Tudo isso se passou e é verdade, tudo isso aconteceu, acontece e acontecerá, quiçá, em algum lugar entre os vivos, quiçá, em algum lugar da ficção. O importante é que sempre teremos momentos como esses, quando nos lembrarmos das primeiras linhas. A carranca continuará sorrindo.


"P.S.: O professor apareceu sim, e deixou que eu ficasse com o DVD. Ele não foi abduzido. Uma pena. Seria uma boa história."

Retrato de Si.


Há tempos escrevi um retrato de mim. Escrevi com linhas finas para que, como hoje, reescrevendo, engrossasse cada traço como as rugas em minha testa.

Um retrato é sempre perigoso, por vezes mudamos a posição corporal para não mostrarmos a nossa imperfeição e, na escrita, tal qual na tecnologia (nos valemos de recursos digitais para manipular a imagem) tendemos a escrever sobre nossas qualidades.

Vejo meu antigo retrato, feito à lápis, e hoje reconheço os traços que meu punho desenhou. Posso reescrevê-los com mais tonicidade, posso apagar algumas linhas. Sou como você me vê, já dizia Clarice, sou mais ainda como me vejo.

Disso não me orgulho. Minha visão ainda é cheia de pré conceitos e baixa estima. Um dia a gente aprende a eliminá-los.

Por ora, meu retrato fica como a técnica pin-hole, imóvel diante da lata, uma imagem ainda em construção.

Ao mestre com carinho...



Era uma manhã comum como outra qualquer. Tão comum como todas as manhãs sabem ser.
Como de costume, sempre atrasada, preparei-me para mais um dia de trabalho. Pensei em fazer daquele amanhecer comum com seu toque de delicadeza.
Decidi escutar jazz e colocar um novo som às imagens que cotidianamente passam aos meus olhos.
Passei para o meu mp3 um cd de jazz. Coloquei o fone e sai portão afora rumo ao desconhecido de mais um dia sem novidades, quiçá algum aborrecimento.
Aquela música foi penetrando toda a minha manhã. Mudando a formação das nuvens. Transformando a percepção das coisas. Como se aquela manhã comum fosse especial por ser uma manhã de jazz.
Já no ponto de ônibus, em frente ao meu colégio ginasial, os carros rodavam pela estrada ao som de música. Tudo tão singelo. Lá, ao longe, vem descendo tão maravilhosamente deselegante, meu antigo professor de História. Ele vinha cabisbaixo, com uma sacola de mercado numa mão, uma boina desajeitada na cabeça. Passos largos e curtos, que embalavam o balançar quase decadente daquele que foi um dos meus melhores professores.
Recordei em meus recortes de lembrança ginasial, os amigos de sala, as aulas e cópias desenfreadas e o rosto daquele professor, que tanto de sua vida, tanto da vida dos outros, tanto da vida do mundo, nos mostrou. E lá vinha ele cambaleante a atravessar a rua. Será que ele supunha que eu estive em sua sala há uns 15 anos? Será que ele supunha que fez a diferença, não digo que tenha sido uma diferença significativa, mas foi a diferença necessária em minha vida, para que eu me tornasse a pessoa que eu sou hoje. Todos de certa forma contribuem para a nossa evolução, para o nosso crescimento. Pouquinho, porém é uma válida contribuição.
Quanto será que nós, alunos, ou melhor, eu aluna, contribui para a vida daquele homem que agora atravessava a rua ao som do melhor jazz daquela manhã não tão comum. Nem eu saberei qual a minha contribuição. Nem ele saberá qual a sua contribuição. Sabemos que amanhecemos e seguimos assim, cabisbaixos e cambaleantes à vida.
O som do jazz transformou minha manhã. Talvez aquela música não me fizesse perceber os passos disritmados daquele homem em direção ao seu dia de trabalho, ao seu comum cotidiano. Quem sabe eu esteja completamente errada, e aquele tenha sido o dia em que ele voltara às pazes com sua esposa e naquela manhã, os beijos ardentes, foram os culpados pela sua cambaleante disritmia. Talvez aqueles fossem os passos dos que estavam nas nuvens.
Talvez.
Viva ao jazz e a loucura das manhãs nem um pouco comuns.

Brilho eterno...




Quantas lembranças teimamos por apagar de nossas mentes? E quanto mais nos forçamos a isto, está lá... escondida, nos assustando vez por outra.

Acredito que algumas coisas não devam ser apagadas da memória... não mesmo.